terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Ler em comunidade

Organizando-me a custo, finalmente consegui comparecer a uma (a última) sessão da comunidade de leitores aqui ao lado, na BMAG. O livro a conversar era o do Manuel Jorge Marmelo ("As Sereias do Mindelo"), que valter hugo mãe, o escritor (e leitor) convidou para estar presente e comentar a diversidade de leituras a partir do seu texto. Imagino que, como autor, deve ser desconcertante perceber isso. Em primeiro lugar, esclareceu-se: o texto não é autobiográfico. Pelo menos não no sentido literal. Resulta de um conjunto de pequenos contos que, por sugestão do editor, se transformaram num pequeno romance. E é ficção, no sentido em que aquelas mulheres não existem senão na projecção do autor (embora para sua grande surpresa algumas personagens se tenham materializado numa visita posterior a Cabo Verde). Pensei que podíamos estar perante uma dupla falácia: a de que, enquanto jornalista (a verdadeira profissão de Jorge Marmelo), o relato é a transcrição da realidade, e a de que enquanto ficcionista, não se descrevem senão invenções. Ocorreu-me uma analogia com o périplo pelas ilhas de Nanni Moretti, num dos episódios de 'Caro Diário': também aí o protagonista procurava ideias para uma história, sem se aperceber que a procura já tinha ganho uma identidade própria enquanto tal; e também aí o autor se apresentava numa encenação autobiográfica. Não era também uma viagem de auto-conhecimento o percurso pelas ilhas feito por Ulisses? As ilhas enquanto universos circunscritos e 'puros', onde experimentamos um impacto não contaminado, como num estudo de laboratório, de onde se arredam todas as outras variáveis? Os lugares (incluindo os literários) são sempre a intersecção entre uma realidade e o olhar adoptado. No acto criativo, o autor dissimula-se mas também se expõe num jogo de papeis cuja chave pode residir numa opinião polifónica como a que se fez ouvir naquele pequeno auditório. E eu, roído, calei os meus bitaites e desejei que aquela conversa não terminasse.