quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Dona F.

Já teve uns olhos de ficar imediatamente hipnotizado, para o que ajudavam as curvas de um corpo bem aconchegado por roupas modernas, que encaminhavam o olhar de baixo para cima, até ficarmos numa espécie de torpor. Acabava de chegar da Venezuela, onde tinha vivido a maior parte da vida e ganhava a vida a embelezar venezuelanas no seu próprio salão. Isto foi há 4 anos. Depois desapareceu das sessões de RVC. Ligou-me agora, discurso atabalhoado e lá combinamos uma entrevista. Apareceu com a mãe, mas não a reconheci logo. Só após um breve instante os olhos a traíram, não como antigamente, mas como reconhecemos um brinquedo preterido e enferrujado. Falou-me das tragédias que engordaram o seu corpo, até ser o triplo do que tinha sido: o divórcio litigioso, a perda dos filhos, a depressão, a espiral de medicação, quatro anos a inchar de infelicidade. E apesar de tudo, a coragem para regressar das trevas trouxe-a a mim de novo. Sem outros motivos aparentes para além da simples e muito humana tenacidade que nos vai segurando ao dia-a-dia. Vê-la já é uma lição de vida, a biografia gravada no corpo, no cabelo e no olhar da candidata dona F.